Isabel Marz tem 29 anos, nasceu na baixada fluminense do Rio de Janeiro e é formada em Letras pela UFRRJ. Suas influências transitam entre o cinema de horror e escritoras como Sylvia Plath. O ímpeto de publicar seus textos surgiu em 2022 e desde então colaborou com revistas literárias e antologias de contos.
Todo ano, um dia antes do natal, vovó esvaziava a cristaleira. Retirava com cuidado todas as peças de cristal e porcelana delicadamente armazenadas e jamais utilizadas, me contava a história de cada uma delas e somava as suas idades. Ela dizia que juntas as peças contabilizavam as idades de todos os membros da família. Vovó lavava com muito carinho cada tacinha e pratinho de sobremesa, enxugava com o cuidado que uma mãe enxugava um recém-nascido e voltava a guardá-las. No dia vinte e cinco comíamos em pratos comuns, lascados e desbotados pelo uso cotidiano.
A cena, em toda a sua pureza, me soava aterrorizante. O ritual pautado em um exercício de inutilidade era como uma maldição sobre a nossa família. Mamãe, com sua louça menos valiosa que a da vovó, começava a fazer uso daquele mecanismo obsessivo de zelo inexplicável. Minhas tias falavam como queriam aquele aparelho de chá de noventa anos para exibir em suas respectivas cristaleiras como peças absurdas de um museu pessoal.
Naquele momento da minha curta vida eu não conseguia encaixar em minha lógica rudimentar como o ritual podia proporcionar tanto fascínio aos adultos. Uma brincadeira de casinha que descortinava a desesperada sensação de preservar a humanidade e civilidade em bules de chás decorados. Me assustava com a hipnose hereditária que acometia as mulheres. A cristaleira era um templo místico e aterrador, lotado de objetos mágicos capazes de corroer a coerência interna de um organismo vivo. As peças permaneciam obscuramente ignoradas no interior dos armários, mas a sua existência era um mapa empoeirado para chegar ao início do fim de um ciclo. Não era véspera de natal até que a louça estivesse cuidadosamente lavada e enxugada, nada estaria em ordem se as histórias sobre cada uma delas não fossem contadas incessantemente dentro da tarde com cheiro de café. As histórias pareciam dançar, flutuavam e se modificavam ano após anos, eram atos de uma grande peça interativa e seu roteiro era cuidadosamente adaptado e renovado.
Lavar a louça era uma tarefa nobre que eu não tinha o mínimo interesse em exercer, mesmo assim, na adolescência isso se tornava um destino inquestionável. Era convocada pontualmente às oito da manhã do dia vinte e três para uma labuta incompreensível ao meu cérebro irritado. O sono e o trabalho mecânico, embalados pelo som de uma voz morosa e adocicada, enchiam meus olhos de uma areia grossa que raspava minha retina violentamente e faziam a minha atenção relaxar. Vovó gritava palavras de atenção de tempos em tempos me trazendo para o presente aos solavancos.
Em um desses natais, que poderia ser qualquer um ou todos, em um dessas manhãs modorrentas regadas a poeira e detergente, em um dos solavancos austeros que acordavam pesadelos, a tacinha frágil de asinhas finas como uma mariposa escorregou do meu susto e se partiu em duas.
Um fio de sangue pingou no pano de prato bordado, não sei se saído de mim ou da taça, não sei se por mim ou por vovó, escorria partindo um legado indigesto. Vovó me olhava atônita. Nenhuma história foi contada, a louça foi lavada pela metade e o habitual ruído de vozes femininas incandescentes e enérgicas que subiam junto ao cheiro do frango foi substituído por um silêncio partido ocasionalmente por sons metálicos de duráveis e robustos talheres que jamais se partiriam.
A materialidade das emoções era tão frágil como louça antiga, era o pouco que restava do que foi designado a vovó como valor. O valor estava na refeição quente e nos afazeres da casa, suas histórias, suas heranças, e era tão delicado e tão sublime, tão facilmente arrancado, tão facilmente destituído.
Vovó lia suas lembranças através de estampas de flores em tons pastéis, como uma cigana estrábica que conta o passado em forma de triunfo para se esquecer que o futuro estava dolorosamente entalhado, sem possibilidade de mudança. Era no passado que havia liberdade, na lembrança maleável e comodamente imperfeita, na possibilidade de transitar pela linguagem e ficcionalizar os fatos que estavam guardados e não podiam ser acessados por mais ninguém. Ela era a dona.
Vovó conduzia sua história como uma narradora onipresente, costurando a imaginação nas mais simples peças de um aparelho de chá. A imaginação carece de alimento, de cores vibrantes, mas o seu espaço era reduzido, não era maior que uma cozinha. E mesmo assim, florescia como era possível, rasgando vidros e procurando luz para crescer.
Ao longo do tempo o fantasma da tacinha quebrada de dissolveu, seus caquinhos foram descartados como atores aposentados do grande espetáculo, mas a sua história continuava, para além da sua existência, e se tornou matéria prima de narrativa. Passei a lavar as peças com o cuidado que era necessário e entrei para o culto, imaginando quantas taças quebradas foram necessárias para que todas nós nos tornássemos guardiãs daquela inusitada biblioteca.
Fotografia: Residência da família Barreira Vianna; ao fundo, a Pedra do Arpoador – José Baptista Barreira Viana (Acervo Instituto Moreira Salles).